Toda vez que um leitor se abre para uma nova história ele conhece algum tipo de narrador. O narrador, por sua vez, é aquele que nos conta a história, que narra os fatos de uma maneira específica e particular, determinando o foco narrativo de uma obra.
Para entender cada um desses conceitos, precisamos inicialmente diferenciar o autor do livro dos vários tipos de narrador possíveis em uma produção literária. É comum em um primeiro momento confundirmos o criador da obra com o narrador principal de um livro.
O próprio leitor, inclusive, quando passa a conhecer intimamente os personagens, dá vida à narrativa, como se aquelas pessoas realmente existissem e as histórias tivessem, de fato, acontecido.
Esse processo é natural. É a capacidade mágica e transformadora da leitura, articulada com maestria pelo autor, capaz de transmitir em palavras, a visualização dos acontecimentos, trazendo o leitor para dentro da obra.
São essas mesmas estratégias narrativas proporcionadas pelo autor que o diferenciam do narrador de uma trama. Enquanto o autor define, calcula e traça o destino dos personagens, o narrador está sempre sujeito a vontade implícita do escritor.
O narrador existe somente na narrativa e pode ou não estar conectado às características e vida do autor. Se o narrador gosta de brócolis, rock e matemática, o autor, por outro lado, pode detestar tudo isso e ter uma personalidade completamente diferente de sua inspiração.
O autor cria, manipula, molda os personagens, enquanto o narrador ganha vida pela capacidade articuladora do escritor. Em outras palavras, o autor é o pai do narrador. É quem escreve. É o homem por trás do livro. É a assinatura da obra. Enquanto o narrador tem o papel de narrar a trama, de segurar nossa mão e nos conduzir pela história, de acordo com a intenção de seu criador.
Foco Narrativo
O foco narrativo representa a direção de uma história, o ponto de vista do narrador, a partir do qual a narração será desenvolvida ao longo da produção literária.
Imagine uma câmera: ela é capaz de captar longas distâncias, fazer um apanhado geral da cena, mas também focar detalhes específicos, mostrando aquilo que o diretor considera importante e quer chamar a atenção do público.
Da mesma maneira, funciona o foco narrativo. Ele é a estrutura que define a perspectiva geral dos acontecimentos, a partir de detalhes como a voz, a pessoa do discurso e o direcionamento dado pelo tipo de narrador.
Para defini-lo, então, é necessário levantar alguns questionamentos. O narrador apenas conta a história ou também participa da trama? Ele é o ator principal do enredo ou se coloca em segundo plano, como um mero espectador da narrativa?
Todas essas particularidades relacionadas aos diversos tipos de narrador definirão o foco narrativo de uma produção literária.
Quando o narrador conta a história a partir de sua visão pessoal, por exemplo, podemos dizer que o foco narrativo foi escrito na primeira pessoa. Mas se ele, por outro lado, se afasta dos personagens, narrando os fatos como se estivesse de fora dos acontecimentos, podemos indicar que o foco narrativo foi desenvolvido na terceira pessoa.
Foco narrativo na primeira pessoa
Como a própria definição sugere, o foco narrativo na primeira pessoa apresentará um tipo de narrador que se coloca também como um personagem da história, podendo assumir o papel de protagonista ou coadjuvante da trama.
O fato é que, nesta posição, o narrador se revela com obviedade, ou seja, é afetado pelos acontecimentos. Portanto, o caráter dessa estrutura tende a ser subjetiva e parcial, uma vez que há o envolvimento emocional do narrador com a própria narrativa.
Exemplo:
“Acordei pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restava-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar mais nem uma hora naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor. Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras… Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
LINS, Osmar. A partida. Melhores contos. Seleção e prefácio de Sandra Nitrini. São Paulo: Global, 2003.
Foco narrativo na terceira pessoa
Quando o foco narrativo for desenvolvido na terceira pessoa, o narrador não participará ativamente dos fatos relatados.
Geralmente, nessas condições, a narrativa assume um caráter mais objetivo e o tipo de narrador tenta se ocultar da própria obra, como se não tivesse relação com a história ou os demais personagens.
Exemplo:
“De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé — muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo — em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.”
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1969.
Tipos de Narrador
Alguns críticos classificam os narradores em dois grandes tipos: narrador na primeira pessoa e narrador na terceira pessoa. Atualmente, entretanto, essa classificação não é mais utilizada, uma vez que a criatividade permite que os narradores assumam diversos tipos de narrador ao longo da produção literária.
Isso significa dizer que o narrador conduz a trama ora em primeira pessoa, acercando-se do fato, ora em terceira pessoa, se distanciando do enredo. Portanto, para compreender o foco narrativo, não basta apenas observar o uso das pessoas no discurso, é preciso identificar também os tipos de narradores que fazem parte do processo interpretativo da obra.
Os principais tipos de narradores que mais aparecem nos textos são: “narrador personagem”, “narrador testemunha”, “narrador observador” e “narrador onisciente”.
Narrador personagem
O narrador personagem é aquele que participa ativamente da história. Sua maneira de narrar os fatos é fortemente marcada por características emocionais e subjetivas, demonstrando a relação íntima que possui com os outros personagens e elementos da narrativa.
Ao mesmo tempo em que narra, ele também participa como personagem, daí o seu nome: narrador personagem. Entretanto, é preciso observar que nem sempre ele será o personagem principal (narrador protagonista) ou até mesmo o personagem secundário (narrador testemunha) da trama. Tudo isso depende da atuação e aparição que o narrador irá inserir em cada momento da história.
É necessário levar em consideração ainda que o narrador personagem conta a narrativa a partir de sua interpretação pessoal. Diante disso, precisamos considerar que ele não detém total conhecimento dos outros personagens, e possui uma visão limitada, contaminada pelo seu próprio ponto de vista parcial dos fatos.
Exemplo de narrador personagem
Dentre os tipos mais famosos de narradores personagens podemos destacar a narrativa de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis (1839-1908). Nessa obra, o narrador personagem é também o personagem principal, chamado de narrador protagonista.
O enredo, escrito na primeira pessoal do singular, é marcado de forte subjetividade e emoção. A intimidade do narrador com o leitor é tamanha que ele chega a conversar diretamente com o espectador, como se conversasse diretamente com ele.
“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1899.
Narrador Testemunha
O narrador testemunha também é um tipo de narrador personagem, uma vez que está inserido na história. A diferença é que nessa situação, ele não é o personagem principal da trama e tenta conter as emoções relacionadas aos fatos.
De maneira mais distanciada, esta categoria de narrador analisa tudo o que acontece ao seu redor e conta a história em primeira pessoa. Ele vivencia os fatos, mas apresenta os acontecimentos a partir de sua visão secundária.
O termo testemunha é utilizado justamente para designar aquele que assiste algo, ou seja, tem a capacidade de dar o seu testemunho de sua perspectiva pessoal. Portanto, o seu papel como narrador é dar o seu depoimento, sendo eles verídicos ou modificados, a fim de que o leitor acredite no seu testemunho.
Apesar de utilizar, geralmente, uma voz mais impessoal e distante, é necessário levar em consideração que o narrador testemunha também possui uma visão limitada e parcial dos acontecimentos. Ele dá o testemunho daquilo que considera importante e pode ser afetado pelo grau de envolvimento que possui com os demais personagens.
Exemplo de narrador Testemunha
Um dos mais famosos exemplos de narrador testemunha pode ser encontrado nas aventuras de Sherlock Holmes, descrito pelo personagem secundário, Dr. John H. Watson, nas obras de Sir Arthur Conan Doyle.
“Confesso que fiquei absolutamente perplexo com aquela nova prova da natureza prática das teorias de meu companheiro. Meu respeito por sua capacidade analítica aumentou de maneira considerável. Mesmo assim, eu ainda nutria a secreta desconfiança de que tudo não passasse de um episódio previamente combinado com o objetivo de me deixar deslumbrado, embora não pudesse compreender qual a sua intenção ao enganar-me daquele jeito. Quando olhei para Holmes, ele terminara de ler a nota e seus olhos haviam adquirido aquela expressão opaca e distante que indicava abstração mental.”
DOYLE, Arthur Conan. Sherlock Holmes, Edição Completa. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
Narrador Onisciente
O narrador onisciente, também chamado de onipresente, é um tipo de narrador que detém conhecimento de toda a história, inclusive de detalhes importantes da trama. Além disso, ele conhece a fundo os outros personagens, desde sentimentos, emoções e até pensamentos.
Nesse tipo de foco narrativo, o narrador na maioria das vezes conta a história em 3ª pessoa. Mas devido a sua grande liberdade, em alguns momentos ele também se permite a narrar em 1ª pessoa.
Isso porque ele sabe o que se passa no íntimo dos outros personagens, e é capaz de revelar ao leitor as vozes interiores, incluindo seu próprio fluxo de consciência, por meio do discurso indireto livre.
Em algumas obras literárias, o narrador assume a função de narrador onisciente intruso, não se limitando apenas a narração da história. Nesses momentos, ele assume um papel de crítico aos outros personagens, atribuindo juízo de valor à suas ações.
O narrador onisciente neutro é o contraponto ao intruso, uma vez que a narração neutra determina que não deve haver observações e opiniões do narrador. Nesta categoria, o narrador simplesmente se ocupa das descrições dos personagens e da narrativa do enredo.
Por fim, há ainda um terceiro tipo chamado de narrador onisciente múltiplo que possui diferentes opiniões e visões, que vão sendo reveladas ao longo da trama. Esse tipo de narrador influencia e conduz a interpretação do leitor que se vê impelido a tomar partido ou decisões a respeito de determinados personagens e ações.
Exemplo de Narrador Onisciente
Na obra Quincas Borba, de Machado de Assis, o leitor pode encontrar um excelente exemplo de narrador onisciente intruso: que narra os eventos em terceira pessoa, mas é íntimo o suficiente para avaliar personalidades, lançar palpites em relação ao comportamento das pessoas da narrativa.
“Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora em Barbacena.”
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Já o livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880), apresenta de maneira perceptível o narrador onisciente neutro, que se atém ao relato de maneira imparcial, mas demonstra conhecer a intimidade dos sentimentos dos personagens.
“Léon finalmente jurara nunca mais encontrar-se com Emma; e se censurava por não ter cumprido a palavra, considerando tudo o que aquela mulher ainda poderia atrair-lhe de confusões e de discursos, sem contar os gracejos de seus colegas, que eram feitos de manhã, ao pé da lareira. Aliás, ele estava prestes a se tornar primeiro escrivão: era o momento de ficar sério. Renunciava também à flauta, aos sentimentos exaltados, à imaginação; pois todo burguês, no calor da juventude, ainda que fosse um só dia, um minuto, acreditou-se capaz de imensas paixões, de altos empreendimentos. O mais medíocre libertino sonhou com sultanas; cada tabelião carrega em si os escombros de um poeta.”
FLAUBERT, Gustave. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
E finalmente, na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892-1953), o leitor poderá perceber a presença do narrador onisciente múltiplo. Através das ações praticadas pelos personagens, o leitor é levado a fazer julgamentos, tomar partidos, ponderar a melhor atitude frente aos problemas levantados pelo enredo.
“A cachorra Baleia estava para morrer. (…) As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. (…) Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito. Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam a desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta: —Vão bulir com a Baleia? (…). Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.”
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Livraria José Olympio, 1938.
Narrador Observador
O narrador observador, por outro lado, estrutura seu discurso narrativo na terceira pessoa e não participa ativamente da história. Esse tipo de narrador apenas expõe os eventos observados por ele, mantendo o distanciamento e uma relativa neutralidade nos eventos narrados.
Nesta situação, a imparcialidade do narrador observador o coloca em nível de igualdade com o leitor. Ambos desconhecem o íntimo dos personagens e espreitam as situações a partir de uma visão externa, ou seja, nem o narrador e nem o leitor conseguem penetrar profundamente os meandros da história.
Entretanto, é preciso considerar que o narrador observador, em certos momentos, transparece conhecimento psíquico do protagonista da trama, conseguindo narrar sentimentos e emoções do personagem principal.
Nessas obras, o narrador é definido como narrador intermediário, que ora desconhece os personagens e ora demonstra ter informações privilegiadas, pelo menos sobre o protagonista.
Em tempo, também é importante destacar que muitos estudiosos chamam de narrador câmera aquele que cumpre a sua função de somente observar atentamente os fatos, para revelar posteriormente, como uma câmera cinematográfica, os acontecimentos.
Essa categoria não desenvolve laços ou vínculos com os personagens ou com as ações que eles executam, cumprindo apenas a função de mostrar os eventos de maneira distanciada.
Exemplo de Narrador Observador
Na obra Miguel Strogoff, de Júlio Verne, verifica-se a presença clássica do tipo de narrador observador: distante e neutro, ele apresenta a vida do personagem como um filme.
“Aos quatorze anos, Miguel Strogoff, que desde os onze acompanhava o pai nas frequentes incursões pela estepe, matara seu primeiro urso. A vida na estepe dera-lhe uma força e resistência incomuns e o rapaz podia passar vinte e quatro horas sem comer e dez noites sem dormir, sem aparentar excessivo desgaste físico, conseguindo sobreviver onde outros em pouco tempo morreriam. Era capaz de guiar-se em plena noite polar, pois o pai lhe ensinara os segredos da orientação — valendo-se de sinais quase imperceptíveis na neve e nas árvores, no vento e no voo dos pássaros”.
VERNE, Júlio. Miguel Strogoff. RBA Brasil, 2003.
Outras classificações de tipos de Narrador
O autor francês, Gerard Genette (1930-2018), por sua vez, propõe um tipo de classificação mais complexa para o foco narrativo em sua obra “Discurso na narrativa” (1979).
Segundo a estrutura desenvolvida pelo teórico, existem os narradores autodiegéticos, aqueles que narram as próprias experiências; os narradores homodiegéticos, que narram a história, mas não são um dos personagens principais e os narradores heterodiegéticos, aqueles que não fazem parte da história, mas narram os acontecimentos.
- Homodiegético
No foco narrativo homodiegético, o narrador é um personagem da história, faz parte do enredo, mas não é o protagonista da trama. Ele apenas veicula as informações advindas de sua própria experiência diegética (universo literário).
Tendo vivido a história como personagem, o narrador retira daí as informações de que precisa para construir seu relato.
Um exemplo de tipo de narrador homodiegético pode ser localizado na famosa obra “O pequeno Príncipe” de Antonie de Saint Exupéry. Na trama, o aviador é o narrador dos acontecimentos, mas não o protagonista da história, papel que pertence ao Pequeno Príncipe.
“Tu falas como as pessoas grandes! Senti um pouco de vergonha. Mas ele acrescentou, implacável: – Tu confundes todas as coisas … Misturas tudo! Estava realmente muito irritado. Sacudia ao vento os cabelos de ouro: – Eu conheço um planeta onde há um sujeito vermelho, quase roxo. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou ninguém. Nunca fez outra coisa senão somas. E o dia todo repete como tu: “Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!” e isso o faz inchar-se de orgulho. Mas ele não é um homem; é um cogumelo! – Um o quê? – Um cogumelo!”
SAINT-EXUPÉRY, Antonie de. O pequeno príncipe. 48. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
- Autodiegético
Um tipo de narrador homodiegético é aquele que não só participa da história, mas conta a sua própria história no texto narrativo. É o personagem principal da produção, também conhecido como narrador protagonista.
Isto significa que este narrador, de certa forma, irá adicionar fatos relevantes ao enredo, pois tudo no texto literário nos é apresentado por ele próprio.
Todas as percepções e características dos personagens são fornecidas pelo narrador autodiegético de forma altamente subjetiva, ou seja, temos acesso apenas a sua versão dos fatos, o que potencializa uma narrativa parcial; não confiável; duvidosa.
As narrativas de caráter autobiográfico também são autodiegéticas por excelência, embora esse tipo de narrador seja amplamente usado na ficção. Exemplo:
“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lengalenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles.”
SALINGER, J. D. O Apanhador no Campo de Centeio. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2016.
- Heterodiegético
No foco narrativo heterodiegético, o tipo de narrador apresentado não participa da história, apenas a conta de uma maneira afastada, na terceira pessoa, ainda que seja um narrador intruso na narrativa.
Como exemplo, podemos citar o narrador de “As intermitências da morte”, de José Saramago (1922-2010). No texto, verifica-se a presença de um narrador heterodiegético, que não faz parte da trama, mas tem consciência de seu papel na diegese (mundo fictício), e se auto-analisa, dialoga com o leitor.
Além disso, o discurso do narrador é permeado por outros discursos na obra. Em alguns momentos, o leitor não consegue distinguir se quem fala é o narrador ou o personagem. Veja:
“(…) Na sua primeira manifestação o rumor também poderia ter saído com toda a naturalidade de uma agência de enterros e trasladações. Pelo visto ninguém parece estar disposto a morrer no primeiro dia do ano, ou de um hospital. Aquele tipo de cama vinte e sete não ata nem desata, ou do porta-voz da polícia de trânsito. É um autêntico mistério que, tendo havido tantos acidentes na estrada, não haja ao menos um morto para exemplo.”
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo. Companhia das Letras, 2005.
Outro exemplo mais simples de um tipo de narrador heterodiegético pode ser contemplado na obra de Virgínia Woof (1882-1941), em Mrs. Dalloway.
“Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores. Pois Lucy estava com todo o serviço programado. Iam retirar as portas dos gonzos; os homens da Rumpelmayer’s estavam para chegar. Além disso, pensou Clarissa Dalloway, que manhã – fresca como de encomenda para crianças na praia. Que divertimento! Que mergulho! (…).”
Woolf, Virginia. Mrs. Dalloway. São Paulo: Grupo Autêntica, 2013.
O foco narrativo, por sua vez, classificado por Genette como focalização, tem a função de enfatizar um elemento da narrativa, podendo ser classificada como focalização interna ou externa.
A focalização interna só é estabelecida dentro do enredo quando encontra um monólogo interior. Sem se prender ao tempo cronológico, e com acentuação para os impulsos dos personagens, este elemento mostra o tempo psicológico e emocional, com ênfase no fluxo de consciência.
Já a focalização externa acontece quando o protagonista age sem revelar seus pensamentos ou sentimentos, ou seja, quando o narrador mostra apenas suas ações.
Assim, pode-se diferenciar a focalização do tipo de narrador. Enquanto a focalização é encarada como um ponto de vista, tendo o papel de regular as informações acerca dos personagens e do enredo, o narrador tem a única função de narrar a história.
Estratégias e funções do Narrador
No livro A retórica da ficção (1980), o crítico literário americano Wayne E. Booth (1921-2005) avalia que os narradores utilizam inúmeros recursos a fim de manipular e intrigar o leitor, levando a não confiabilidade da narrativa.
Essa estratégia chamada de “contar versus mostrar” é uma ferramenta que marca a subjetividade e a capacidade do narrador. Isto é, o mecanismo proporciona liberdade ao personagem, que pode agir de maneira contrária à própria narração.
Essa teoria abre espaço para percebermos que o narrador heterodiegético (terceira pessoa) pode falsificar a história que conta, sobretudo nos casos autodiegéticos (primeira pessoa).
O pesquisador francês Gerard Genette também estabeleceu diretrizes para identificarmos os mecanismos utilizados pelo narrador para capturar o leitor. Fazendo a distinção entre a voz e o modo narrado, o autor identificou diferenças entre o narrador e a perspectiva por ele adotada, que pode se modificar sutilmente, por exemplo, no uso do discurso indireto livre.
Nesse sentido, Genette destaca primeiramente a perspectiva zero, quando o narrador não adota nenhum ponto de vista concreto, mas dá o leitor todas as informações disponíveis, sendo onisciente e sabendo mais do que qualquer personagem da trama.
Na perspectiva externa, os personagens são vistos apenas externamente, deixando o leitor sem acesso aos pensamentos das pessoas da narrativa. E por último, na perspectiva interna, o narrador restringe a informação a partir do ponto de vista de um personagem (perspectiva interna fixa) ou de vários (perspectiva interna variável).
O narrador, chamado por Genette de “ser de papel”, é o personagem responsável por nos conduzir ao longo da leitura. No entanto, é preciso levar em conta que ele também pode adotar outros papéis, além da narração propriamente dita. O autor francês propõe, assim, que o narrador pode exercer as seguintes funções:
- função de regência: diz respeito ao texto narrativo, à forma como o narrador organiza internamente a construção da narrativa;
- função da comunicação: diz respeito à situação narrativa. Os protagonistas são o narratário (leitor) e o próprio narrador, que estabelece, de forma direta ou indireta, contato ou diálogo com o receptor;
- função testemunhal: o narrador assume essa função quando informa a fonte de suas informações, compartilha seus sentimentos frente a determinados episódios ou, ainda, o grau de precisão de suas memórias;
- função ideológica: diz respeito às intervenções, diretas ou indiretas, que o narrador faz ao longo da narrativa, expondo suas opiniões acerca de alguma ação ou personagem;
- função narrativa: Este é o seu papel principal, a única função obrigatória. Nenhum narrador pode se desviar desse trabalho, sem o qual a história não se desenvolve.